A evolução da sociedade rumo a um cenário mais justo e igualitário é doloroso para quem sempre viveu de privilégios, mas é um caminho sem volta e os mal acostumados terão que se adaptar.
Quando pensamos que nada mais pode nos surpreender na internet, sempre tem alguém para nos provar o contrário. Há alguns dias, ficamos embasbacados com a seguinte afirmação:
“Deus me livre de mulher CEO.
O mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a muher a fazer papel de homem.
Homem que tem condições de bancar sua mulher e quem não o faz está perdendo o maior benefício de uma mulher, que é o uso da energia feminina nos lugares certos, lar e família.”

A pérola que destila machismo foi dita (ou melhor, escrita) por Tallis Gomes, agora ex-CEO do grupo G4 Educação, empresa voltada a cursos de negócios, carreira e empreendedorismo, em resposta a uma pergunta que recebeu na caixinha de seu Instagram ao ser questionado: “se sua mulher fosse CEO de uma grande companhia, vocês estariam noivos?”.
Desafios no setor de turismo ainda são grandes
Quando o assunto é o mercado de turismo, as mulheres desempenham um papel crescente e essencial na indústria, porém, ainda enfrentam grandes desafios para alcançar a equidade de gênero, especialmente em cargos de liderança. Apesar de representarem 54% da força de trabalho em todo o mundo (de acordo com World Travel & Tourism Council — WTTC), 49% dos postos no setor de turismo no Brasil são ocupados por mulheres, mas muitas ocupam posições tradicionalmente femininas, como camareiras e atendentes de serviços de alimentação, limitando seu acesso a cargos de maior responsabilidade.
A segregação de gênero, tanto horizontal quanto vertical, perpetua a disparidade em termos de promoção e crescimento profissional. A disparidade salarial é um obstáculo notável. É o que mostra o relatório “As mulheres na conservação e promoção do turismo sustentável” realizado pelo SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) em 2023. As mulheres recebem, em média, salários 25% menores que os homens em funções similares no setor.
Essa desigualdade é ainda mais acentuada para mulheres negras, que recebem até 55% menos que homens brancos. Além disso, o relatório evidencia que, apesar de um maior nível de educação entre as mulheres, elas enfrentam mais dificuldades para acessar cargos mais altos e conseguir financiamentos para seus negócios. Por isso, a criação e a fiscalização de políticas mais inclusivas e progressistas por parte das empresas e governos têm sido tão latente. É necessário buscar práticas de diversidade e inclusão para corrigir essas distorções e promover um ambiente de trabalho mais justo.
Os estereótipos da mulher-cuidadora
A pesquisadora Marianne Bertrand, professora de economia da Universidade de Chicago e doutora em econômica pela Universidade de Harvard passou pelo Brasil em setembro para palestrar no evento promovido pelo Insper “Evidências sobre Políticas de Mercado de Trabalho e Implicações para o Brasil”. Em entrevista publicada pela Exame, ela revela que “um estereótipo de gênero que tem sido mais lento para mudar está relacionado à ideia de que as mulheres são melhores cuidadoras, mais devotadas aos outros do que os homens e mais sensíveis do que os homens. Ainda há uma forte expectativa na sociedade de que as mulheres sejam as responsáveis pelo “cuidado” (com os filhos, cônjuges, pais idosos, etc.)”.
A afirmação da professora é corroborada pela infeliz afirmação de Tallis Gomes. Na visão dele, em suma, a “energia” das mulheres deve se concentrar nos afazeres domésticos e no cuidado com a família.
Falas como essa refletem preconceitos históricos e sociais, dificultando que as mulheres se consolidem em cargos decisivos, o que é fundamental para promover mudanças estruturais no mercado de trabalho, na sociedade de forma geral e até mesmo no meio ambiente.
Evolução no cenário do turismo
Para combater o cenário de desigualdade, iniciativas de mulheres têm surgido para impulsionar o protagonismo feminino no turismo. Plataformas como a MUST — Mulheres no Turismoe o coletivo Mulheres do Turismo em Redetêm oferecido suporte e networking, ajudando a aumentar o número de mulheres em posições de decisão. No entanto, apesar dos avanços, é necessário que mais empresas sigam esse exemplo e adotem medidas para promover uma real transformação no setor.
Um ponto positivo do relatório do SEBRAE destaca que, além de serem fundamentais em operações e gestão, as mulheres no turismo muitas vezes trazem uma abordagem mais inclusiva e diversificada ao setor. Elas estão à frente na promoção do turismo sustentável, conectando visitantes às comunidades locais de maneira que gere impacto positivo e minimizem os danos ambientais. Essa atuação ajuda a transformar o turismo em uma ferramenta de desenvolvimento comunitário e preservação ambiental
As mulheres têm desempenhado papéis cruciais na preservação do patrimônio cultural e natural, ao mesmo tempo em que criam novas oportunidades e experiências inovadoras para os viajantes. Elas são particularmente ativas em áreas como hospedagem e alimentação, setores onde sua presença é majoritária. O relatório também menciona que as mulheres possuem uma capacidade empreendedora notável, com uma habilidade especial para atender à demanda por experiências mais autênticas e sustentáveis que os viajantes buscam atualmente.
A liderança feminina no turismo, no entanto, tem sido associada a um desempenho superior em sustentabilidade e governança nas empresas. Organizações com mulheres em posições executivas tendem a ter práticas mais avançadas de sustentabilidade e maior conscientização social. Essa influência se reflete em uma gestão mais equilibrada, que busca integrar o impacto social e ambiental em suas operações.
As mulheres como protagonistas
Não por acaso, a resposta ao comentário de Gomes veio com força. A internet se indignou e Gomes foi obrigado a renunciar a seu cargo no grupo G4 Educação. A então CFO da companhia, Maria Isabel Antonini, assumiu como a nova CEO.
Pensamentos como o de Gomes não têm mais espaço na nossa sociedade. Ainda que algumas pessoas (homens e mulheres) estejam sofrendo para aceitar isso, mais cedo ou mais tarde eles irão compreender que muitas mulheres não querem mais se dedicar somente ao lar e à família. Além disso, as mulheres já não se contentam com o mínino. Ocupar espaços, trabalhar, estudar e liderar grandes empresas é só início. As mulheres querem e podem muito mais.
Por Júlia Guerra — Analista de Marketing na SMI